O crítico de arte não é como um juiz, que emite seu veredicto baseado
nos artigos da lei. Do juiz espera-se impessoalidade a fim de que seus
sentimentos e pré-juízos não interfiram na apreciação da coisa a ser
julgada. Já, do crítico, não. Como pedir impessoalidade a alguém que
julga a partir da emoção que a obra lhe transmite? Certamente, a emoção
artística implica, da parte do crítico, uma visão teórica, uma
compreensão do que seja ou não seja uma obra de arte, mas jamais partirá
ele de normas e princípios em que deverá enquadrar a obra que tem
diante dos olhos. Há, sem dúvida, críticos, cuja visão será mais ou
menos abrangente, mais ou menos flexível, mas nunca poderá ele
demonstrar, como um juiz no tribunal, que o autor desta ou daquela obra
está indiscutivelmente errado ou certo. Seu juízo é sempre parcial e,
por isso mesmo, discutível. Isto vale tanto para o crítico que, por
exemplo, questiona o valor artístico de determinada tendência de
vanguarda como para aquele que a defende, já que nem um nem outro tem
condições de demonstrar de modo indiscutível o acerto de sua opinião.
A tendência atual, conhecida como arte conceitual ou “arte
contemporânea”, cujas primeiras manifestações surgiram na segunda década
do século 20 com as manifestações dadaístas e, mais particularmente,
com os read-mades de Marcel Duchamp, constitui a mais radical ruptura
com os conceitos artísticos, a ponto de ter sido designada por seu
inventor como “antiarte”. De fato, as manifestações que dispensam os
suportes tradicionais da expressão artística e, com eles, as próprias
linguagens da arte, dificilmente podem ser tidas como obras de arte.
Isso não significa que não expressem nada, que não tenham qualquer
significação. A questão é saber se tal modo de expressão pode ser
considerado arte.
Não resta dúvida de que, para os defensores dessa tendência, tal
questão já não tem cabimento: para o antiartista, o que até aqui se
chamou de arte não importa; o que vale é a expressão pura e simples – e
tudo é expressão. Isso que, de meu ponto de vista, tiraria qualquer
sentido a tal escolha (se toda e qualquer expressão é arte, nada é
arte), constitui a base teórica da antiarte. Por isso mesmo entendo que
essa negação da arte pela afirmação da antiestética expressará, talvez, a
rejeição de uma concepção da existência como invenção de um universo
significativo fundado no imaginário e na fantasia. Não por acaso, a
maioria das expressões anti-arte apoia-se na banalidade do cotidiano e a
ela remete ou a elementos materiais destituídos de transcendência.
Tomemos como exemplo a arte de Márcia X, de que vi recentemente uma
retrospectiva aqui no Rio. Uma de suas “obras” consistiu em mergulhar
numa banheira cheia de coca-cola; uma outra era ela manipulando, em
condutos de vidro transparente, tinta líquida azul. Tanto num caso como
noutro, está evidente o caráter gratuito da atitude. Que significação
pode ter mergulhar numa bacia cheia de refrigerante diante de meia dúzia
de espectadores? Trata-se, sem dúvida, de uma ação inusitada, mas que
nenhuma conseqüência teve (ou terá), seja na vida cultural ou na vida
social. O mesmo pode dizer-se da manipulação de tinta líquida. Acaba a
exibição, acabou-se tudo. Disso sobrarão, como sobraram, fotografias, um
modo de registrar um fato que em si não tem qualquer importância.
Alegar que os espetáculos de teatro e dança também são efêmeros, seria
desconhecer a natureza estética daquelas duas formas de expressão.
Quando se trata das artes plásticas ou da literatura, nenhuma
importância tem se o pintor ou o escritor trabalhou em pé ou sentado, se
estava nu ou vestido ao pintar ou escrever: o que importa é a obra que
resulta de seu trabalho. Já na antiarte, que nega o objeto artístico, o
que importa é a performance. É verdade que há antiartistas que produzem
objetos, mas não objetos estéticos, resultantes do domínio técnico da
linguagem artística; são, quase sempre, objetos não-estéticos, às vezes
na linha dos read-mades.
Cabe então indagar o que leva uma pessoa, com vocação artística, a
consumir sua vida em atos gratuitos, inteiramente desvinculados uns dos
outros, efêmeros por natureza e sem qualquer peso cultural. Essa mesma
artista empregou grande parte de seu tempo a criar cenas eróticas com
bonecos e a fazer do falo um tema constante. Numa época em que a
repressão sexual já perdera força e importância, voltar-se tão
insistentemente para tal temática indica pobreza de imaginação e
superficialidade no trato dos assuntos.
Ao dizer isso, não emito um juízo estético. Apenas constato o que é óbvio, situando-me no mesmo plano não-artístico em que a autora de tais obras se colocou. Certamente, não se podem levantar questões estéticas em face de expressões que, por opção, as excluem. Se diante de uma obra de Morandi ou de um Pevsner, não teria cabimento adotar uma análise psicanalista ou sociológica em lugar da apreciação estética, no caso da antiarte, isto é perfeitamente cabível. Resumindo, diria que tais manifestações são expressão de um impasse em que se encontram muitos daqueles que, negando a obra de arte, não sabem o que pôr em seu lugar.
Fonte: Revista Continente Multicultural www.continentemulticultural.com.br
Proximas Postagens: Arte e culturaAprendizado Cultural
Sentido para ensinar arte
Nenhum comentário:
Postar um comentário