Já nos referimos nesta coluna à questão da pintura como produto
artesanal na sociedade moderna que começa com a industrialização, em
meados do século 19. Este é um dado decisivo para se entender algumas
questões da arte daquela época e dos movimentos de vanguarda que surgem
no início do século e influem sobre toda a arte contemporânea.
A indústria caracteriza-se pela produção em série dos objetos. No
início, esta capacidade foi utilizada, não apenas para reproduzir
objetos novos – na verdade, utilitários –, mas também para copiar as
formas artísticas consagradas e representativas do gosto tradicional.
Por exemplo, os capitéis gregos, com que o estilo revival enfeitava os
edifícios erguidos então, deixaram de ser feitos por artesãos para serem
reproduzidos industrialmente. Herbert Read observou também, em seu
livro Art and Industry, como o gosto artístico consagrado induziu os
fabricantes de máquinas a adotarem, por exemplo, colunatas clássicas na
construção de uma máquina de fiar. A invenção das formas novas,
correspondentes à nova técnica de produção, viria mais tarde e se
caracterizaria pela eliminação dos elementos decorativos que, por assim
dizer, ocultavam a natureza funcional da forma. Sulivan formulou a nova
atitude em face do design numa frase que se tornou um dogma: “a forma
segue a função”. Se é verdade que esse princípio foi adotado
particularmente na arquitetura e nos objetos de uso, nem por isso deixou
de influir sobre a pintura e a escultura, provocando uma verdadeira
revolução no modo de conceber estas artes de expressão individual. A
primeira e mais radical manifestação deste fenômeno foi a do movimento
De Stijl, criado por Piet Mondrian e Van Doesburg, na Holanda, por volta
de 1917. Se é verdade que esse movimento derivou do Cubismo, tomou dele
apenas um dos aspectos – o construtivo – e lhe deu um curso de que nem
Picasso nem Braque jamais suspeitariam. Este movimento se caracterizou
pela drástica ruptura com a linguagem figurativa da pintura, a exclusão
de todo e qualquer fator subjetivo e a pretensa integração da expressão
pictórica na arquitetura. Outro movimento, que também expressou esta
adesão aos modos de conceber e construir a obra próprios da produção
industrial, foi a arte dos russos Antoine Pevsner e Naum Gabo. Mas estas
são tendências, por assim dizer, afirmativas das novas técnicas,
enquanto houve outras que podem ser entendidas como resultados críticos
da idade industrial sobre as artes.
É curioso que o mesmo Cubismo, donde derivou o Neoplasticismo holandês,
continha também os primeiros sinais de outro lado da questão: a crise
do artesanato artístico. Esta crise se manifesta, de modo larvar, nos
primeiros papiers collés que Braque e Picasso introduzem em suas telas,
substituindo o trabalho artesanal do pintor pelo produto industrial, já
pronto, como no caso da madeira do violino representada por papel de
parede imitando madeira; é o mesmo caso do pedaço de jornal colado no
lugar onde o pintor teria que imitar uma folha de jornal. Ao fazê-lo, os
dois cubistas estavam de fato afirmando que o trabalho artesanal não é
fator imprescindível na feitura do quadro. Ou seja, se posso usar papel
de parede para representar a madeira num objeto do quadro, poderia
igualmente compô-lo todo com elementos feitos industrialmente. Na
verdade, nem Picasso nem Braque levam esta experiência às últimas
conseqüências; em vez disso, usam o precedente para construir o quadro
com diferentes elementos, que vão desde areia e prego, até barbante e
placa de metal. De uma forma ou de outra, o certo é que a noção de
quadro enquanto coisa pintada, produto do trabalho artesanal que utiliza
tinta e pincel, estava superada, embora o quadro continuasse a ser um
produto artesanal. Pode-se dizer que já não era pintura.
Não obstante, não apenas Braque e Picasso retornam à pintura, como
também o fazem outros artistas que promoveriam os movimentos de
vanguarda posteriores, ao longo do século 20. No entanto, aquela ruptura
vislumbrada no Cubismo, encontrará um seguidor radical, cujas propostas
marcarão profundamente a arte contemporânea, precisamente por encarnar a
crise implícita na contradição arte artesanal e idade industrial. Este
seguidor é Marcel Duchamp. Não se pode dizer que ele, desde o começo,
tinha claro o caminho que queria seguir. Pelo contrário, ele pintou
influenciado pelos cubistas e pelos futuristas. A consciência de que a
máquina tornara o artesanato artístico obsoleto, levou-o a tentar um
caminho novo, desvinculado da linguagem tradicional da arte que, em vez
de partir da intuição artística, partiria de cálculos matemáticos. Daí
nasce o Grande Vidro, que resultou numa experiência frustrada. Talvez
por isso mesmo volta-se para uma idéia mais radical, que são os
read-mades: a substituição do quadro ou da escultura por um produto
industrial como o urinol de botequim que ele intitula Fontaine, assina
com o pseudônimo Mutt e envia para a exposição dos Salão dos
Independentes, em1917. Era o primeiro de uma série de outros objetos já
prontos – como a roda de bicicleta que ele monta numa banqueta ou uma pá
de lixo – com que ele ironicamente afirma a desvinculação entre a arte e
o artesanato, entre a criação artística e o trabalho manual, mas,
também, entre o estético e a vulgaridade. Não obstante, quando vemos a
sua última obra – Étant donné –, envolta em intenso erotismo e em grande
parte produto do trabalho artesanal, tendemos a acreditar que a obra de
Duchamp é muito mais a expressão de uma nostalgia da imaginação poética
presente nas obras do passado do que uma adesão aos valores da
linguagem industrial, já que o seu pensamento se caracteriza muito mais
pela boutade dadaísta e pelo onirismo surrealista do que pela
racionalidade funcional da estética industrial.
As tendências neoplásticas e construtivistas não tiveram desdobramento
no futuro, muito embora, a arte concreta da escola de Ulm – que teve
seguidores na Argentina e no Brasil nos anos 50 – denote alguma ligação
com aqueles movimentos. O lado menos racional do Cubismo, bem como a
valorização da subjetividade que se dá com o Expressionismo, gerará no
futuro um movimento que surgiu da desagregação da linguagem pictórica,
mudada já agora de trabalho artesanal em ação automática, gestual, cega –
o Tachismo. Tanto este movimento quanto a arte conceitual nascida das
propostas de Duchamp são expressões derradeiras da crise que a era
industrial provocou nas artes de natureza artesanal.
Mas, se a pintura, por exemplo, não goza hoje da importância que a
distinguiu no passado, é verdade que ela se tornou, para o artista de
hoje, um campo de expressão único, que lhe permite inventar novos
signos, novos significados, só possíveis nele, e que são por isso mesmo
um modo próprio de reinventar a realidade.
Fonte original: Revista Continente Multicultural: www.continentemulticultural.com.br
Fonte onde peguei: http://www.portalartes.com.br/artigos/679-arte-na-idade-industrial.html
Proximas postagens:
- Impasse da Antiarte
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