Preservar é coisa séria. Restauração também, por Jorge Luis Stocker Jr
18 de abril de 2014
A restauração de bens históricos é
competência do profissional arquiteto e urbanista, segundo a legislação
existente e as resoluções internas do CAU. O conhecimento técnico e
teórico necessário para propor uma restauração, no entanto, ainda passa
longe de integrar efetivamente os currículos. Este conhecimento
específico está restrito às pós-graduações profissionalizantes, que
ainda são poucas e, devido a geral não exigência de especialização para
assumir uma obra de restauro, tornam-se pouco atrativas.

O efeito Dona Cecília está presente em muitas obras de restauração.
O resultado deste lapso de informação e de formação é a agressão
contínua a bens patrimoniais de importância ímpar, que são submetidos a
intervenções equivocadas ou até desastrosas que aceleram sua degradação,
desfiguram seu aspecto volumétrico ou mesmo implicam praticamente na
perda total do bem.
Antes de mais nada: Existem casos e casos
É preciso sempre deixar muito claro que patrimônio cultural é diverso
e não um conceito fechado e absoluto. Existem diferentes tipos de
valores, e diferentes intensidades de importância destes valores, que
podem ser atribuídos aos bens culturais.
Existe, portanto, aquele bem que pode ser inventariado como
patrimônio cultural ainda que não tenha grandes valores artísticos ou
históricos – mas em contrapartida, compõe paisagem ou pertence a uma
tipologia característica do local. Estes bens patrimoniais normalmente
se prestam a receber intervenções mais profundas, desde que mantenham
suas características principais (volumetrias, ritmo de fenestrações,
etc).
E existem aqueles bens que tem enorme relevância arquitetônica e/ou
histórica, bem como paisagística, documental, social e etc. que, por
suas características únicas, merecem muita prudência, sensibilidade e
cuidados ao receberem intervenções recuperativas. Isso não significa que
não possam ser adaptados e receber anexos, e sim que essas adaptações
anexos devem ser elaboradas com todo cuidado e seguindo diretrizes de
preservação.

Jogo dos 7, ou mais, erros.

É importante frisar que o senso comum de “manter apenas a fachada” é
bastante perigoso e equivocado. Faz-se necessário analisar sempre muito
bem os valores de cada bem histórico, para que se defina o que nele é
importante e o que eventualmente possa não ser.
Intervenções desastradas
Recentemente o caso da desfiguração de uma pintura religiosa
promovida pela “dona Cecília” teve grande repercussão na mídia
internacional. A deformação de uma obra de arte é bastante fácil de
reconhecer. Já a deformação de obras de escultura e de arquitetura
muitas vezes passam despercebidas, devido aos poucos bons referenciais
estéticos e culturais da população.

O efeito “dona Cecilia” – na arte visual é fácil de reconhecer. Já tentou em edificações?
O tema torna-se delicado e difícil pois, para o senso comum, qualquer
obra recuperativa seria melhor do que o abandono. O problema é que as
obras recuperativas equivocadas acabam sendo tão agressivas para a
preservação do bem histórico quanto o abandono. A analogia com a pintura
anteriormente apresentada é válida – será que esta “recuperação” salvou
a pintura? Será que estas reformas desastrosas salvam, de fato, os bens
históricos?
O senso comum considera restaurada a edificação que após algumas
obras fica em aparente bom estado, com tinta fresca colorida e “
bonita”. A questão, no entanto, é muito mais complexa: além do conceito
de “beleza” ser muito relativo, soluções técnicas inadequadas, mesmo com
intenção de recuperar, costumam inclusive piorar a saúde da edificação.
Podemos citar como alguns exemplos mais recorrentes o uso de reboco
composto por cimento em edificações incompatíveis (deixando as paredes
rapidamente com reboco craquelado – o que facilita infiltrações
pluviais); uso de tintas inadequadas – como a latex acrílica ou até a
antipixação – sufocando as paredes antigas (que rapidamente se destacam
da parede, gerando bolhas que igualmente facilitam infiltrações);
construção de lajes, proto-lajes e outros tipos de coberturas ou anexos
contíguos a edificação histórica com técnicas inadequadas, gerando áreas
de contato problemáticas que facilitam infiltrações, exposição indevida
de madeiramentos que passaram décadas escondidos por reboco, expondo
material frágil às intempéries, envernizamento de taipas de barro;
aterramento de porões e fechamento dos respiros, causando umidade
ascendente e prejudicando a longo prazo até mesmo as fundações, entre
tantos outros inúmeros desastres.

Efeito do uso de tinta inadequada. Bonitinha, mas ordinária!
As intervenções inadequadas são muito mais dispendiosas a longo
prazo, visto que geram novas patologias e até problemas estruturais
graves que precisarão ser corrigidos; e principalmente, descaracterizam o
conteúdo cultural da edificação, agredindo o direito à memória de todos
os cidadãos. A descaracterização dos bens históricos protegidos por lei
é gravíssimo, pois torna questionável todo o esforço pela preservação,
uma vez que derruba diretamente o principal objetivo que é a manutenção
da memória através do documento histórico (edificação e paisagem),
servindo a toda a sociedade.

Reboco inadequado para paredes com rejunte a base de barro e cal e seu efeito…
Torna-se, portanto, urgente e necessária a maior difusão do
conhecimento técnico de restauração de bens históricos, tanto para o
projeto quanto para a execução das técnicas tradicionais. Ainda mais
urgente é a evolução das políticas de patrimônio cultural, para que de
fato contemplem e possibilitem que proprietários de imóveis particulares
tombados ou inventariados financiem a recuperação dos imóveis com
assessoramento técnico adequado. E o aparelhamento dos órgãos de
preservação nacional e estaduais, permitindo que contribuam no processo
de estabelecimento de diretrizes, aprovação de projetos e acompanhamento
das obras mais importantes, uma vez que ainda é numericamente
impossível que cada Prefeitura mantenha técnicos capacitados nesta área.
Enquanto a questão não evoluir, continuaremos nos deparando com inúmeras restaurações com o padrão “dona Cecília”.
Jorge Luís Stocker Jr., estudante de Arquitetura e Urbanismo, delegado regional da Defender no Vale do Sinos e Encosta da Serra
Fonte:
dzeit.blogspot.com.br