Leonel Kaz responde à espantosa pergunta do ministro Aloizio Mercadante sobre o que é que museu tem a ver com educação
Texto publicado originalmente a 14 de junho de 2013
A espantosa pergunta feita pelo ministro — da Educação! –,
Aloizio Mercadante, durante visita, dias atrás, a um dos museus da
Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, mereceu uma educada e ilustrada
resposta do jornalista, crítico de arte, gênio das artes gráficas e
editor Leonel Kaz, curador de um dos mais interessantes e criativos
museus do país, o Museu do Futebol, em São Paulo, e uma das pessoas mais
cultas e inteligentes que conheço.
Tomara que Mercadante aprenda algo. Confiram:
Artigo publicado no jornal O Globo
O LUGAR DO MUSEU NA EDUCAÇÃO
“O que o museu tem a ver com educação?”
Essa pergunta do ministro da Educação, Aloízio Mercadante, na imprensa e repercutida na Coluna do Noblat (3/6) do Globo, merece algumas ponderações. Faço uma dezena delas:
1. Museu é lugar para se entrar de corpo inteiro,
tridimensionalmente, com todos os sentidos despertos. Cada obra de arte
ou objeto exposto nos convida a olhá-lo, a partilhar dele, a se entregar
a ele. Esse é o caminho da educação de qualidade: permitir que a vida
nos invada e que o objeto inanimado ganhe um vislumbre novo, a cada dia,
em cada visita. O Grande Pinheiro, tela de Cèzanne no Masp,
pode ser vista cem vezes e, a cada vez, será diferente da outra; o
quadro, de certa forma, muda, porque muda o mundo e mudamos nós também.
2. Museu é lugar, portanto, de olhar de forma distinta para as
coisas. E para os seres também. É lugar de aprender a olhar com outro
olhar para o outro (que quase nunca o vemos), para a escola (que pode
ser, a cada dia, diferente do que é habitualmente) e para a cidade (que
tanto a desprezamos, porque parece não nos pertencer).
3. Museu é lugar de entrar e dizer: é nosso! Museus são lugares de
coleções, e as cidades, também. Cidades são escolas do olhar, pois nos
permitem colecionar tudo de nossa vida: os dias que passam, a família
que reunimos, os amigos que temos e ainda os bueiros da rua e as janelas
que vislumbramos em nosso caminho diário (elas falam de épocas
diferentes, narram histórias distintas). A cidade é a história.
4. Museu é lugar onde a cidade (a história) se reconta. Rebrota. Onde
ela nos faz crer que, para além do mero contorno do corpo, existimos.
Criamos uma identificação com aqueles fatos e pessoas que ali estão, que
nos antecederam em ideias, pensamentos e sentimentos. Que ajudaram a
criar “o imaginário daquilo que imaginamos que somos”, como definiu o
poeta Ferreira Gullar. É dentro da plenitude deste imaginário que o
Museu nos reaviva a memória e o fulgor da boa aula.
5. Museu é o lugar do mérito, onde peças e imagens entraram porque
mereceram entrar, porque foram, em algum momento, singulares. Elas estão
ali para nos apontar que cada qual que as visita pode ter sua
singularidade, e que ninguém precisa ser prisioneiro dos preconceitos do
mundo. Museu é onde a cultura aponta à educação que tanto um como o
outro foram feitos para reinventar o modo de ver as coisas.
6. Museu é lugar para se abandonar a parafernália eletrônica, os
iPads, iPhones e Ai-ais e permitir que obras e imagens que lá se
encontram repercutam em nós. Num museu somos nós os capturados pelos
objetos, somos nós o verdadeiro conteúdo de cada museu, com a capacidade
de transformar e sermos transformados pelo que nos cerca.
7. Museu é lugar para criar um vazio entre o olhar que vê e o objeto
que é visto. Um vazio de silêncio. Um vazio que amplia horizontes de
percepção. Assim, o professor deixa de ser professor e passa a ser o que
verdadeiramente é: um inventor de roteiros, um “possibilitador” de
descobertas. É lugar de aluno, com a ajuda dos mestres, revelar
potencialidades insuspeitas, tantas vezes esmagadas pelo caráter
repressor das circunstâncias que o cercam.
8. Museu é lugar de experiência. Tudo o que é pode não ser: há uma
mágica combinatória em todas as coisas, como as crianças nos ensinam.
Tudo pode combinar com tudo, independentemente de critérios,
ordenamentos, hierarquias. A ordem do museu pressupõe a desordem do
olhar.
9. Museu é ainda lugar de coleções (embora a internet seja, hoje, o
maior museu do mundo). Assim, o museu não é mais apenas um espaço
físico, assim como a escola não o é. A cidade toda é uma grande escola. O
Museu é uma de suas salas de aula.
10. Museu é o lugar em que “a criança se educa, vivendo” como nos
ensinou, desde 1929, o educador Anísio Teixeira, ao falar da escola.
Leonel Kaz é curador do Museu do Futebol
http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/leonel-kaz-responde-a-espantosa-pergunta-do-ministro-aloizio-mercadante-sobre-o-que-e-que-museu-tem-a-ver-com-educacao/
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